Tive o prazer e o desafio de escrever a apresentação do livro de estreia de Leonardo Chioda, Tempestardes (editora Patuá). Eis.
Leituras outras
Uma tarde junto à poética de Leonardo Chioda é tempo suficiente para a percepção do atemporal. As torrentes vocabulares que presenciamos ao ler sua poesia, repletas de comoção porém límpidas de anuviamentos, configuram uma espécie muito particular de portal – o poeta instaura o tempo, como deve ser, seu universo e criação, e nos convida à passagem. O poeta é um deus. Ou, como o autor pudesse ele mesmo designar, imerso na cultura que lhe é pertinente, um herói.
Semidivino, transita entre os deuses e os homens, e, nesse sentido, é portador da revelação do ser da e pela palavra, como anuncia Octavio Paz: "é a revelação de si mesmo que o homem faz a si mesmo".
Decerto todos os poetas o seriam, porém Chioda ostenta desmedidamente a heráldica do lado arquetípico da força: sua dicção avista-se – e, pode-se intuir, para futuros não muito distantes, alinha-se – com a dos autores que na história da literatura derivaram para o sagrado primordial, o sagrado que no dizer de Georges Bataille abarca o bem e o mal, o puro e o impuro. A unidade.
É esta a linhagem, a de todos os que escreveram em desafio ao racionalismo, que o leitor antevê, convidado à clarividência pelas palavras. Brutas, magmáticas, na poesia de Tempestardes elas em maioria irrompem/brotam inteiras, fundacionais: carregam em si uma espécie de seiva ansiosa por eclodir, a sua real primordialidade. E daí já não são signos e significados apenas, mas células, sementes, para permanecer no universo semântico da natureza, um dos escolhidos pelo autor nesta estreia.
Em estado de fogo, como o hebreu dos antigos, as palavras aqui criam. Coladas à anunciação que lhes parece intrínseca, elas encarnam a própria profecia; elas são o fato mágico. Para os iniciados em magia, ocorre a familiaridade à potência do verbo – entramos então na esfera das invocações, dos conjuros, dos encantamentos. Palavra que engendra e determina. Para os que não, o feitiço surge no incomum desembrenhar dos poemas, cada um, como Chioda propõe, um golem particular. Estranhamento. O destino não tem rosto/ Só um cristal negro de sete pontas perpétuas/ Sob um casaco tom de sangue/ Coagulado. Rosas antigas nas patas/ O destino tem a boca de florilégio – um mosaico ("Poética do destino").
E, no sentido também rústico do pagão, cada vocábulo cresce em corporeidade, desabrochando de si mesmo. A clarividência dos signos ao mesmo tempo comporta a animalidade, como uma esfinge de vísceras à mostra, que desafia os códigos do oculto, expondo-se. Leonardo Chioda nos convida a uma peregrinação pelo templo do sensorial, fotogramas encantatórios porém telúricos. Beija os escritos/ sob o signo da vertigem/ só o fim da manhã é/ o mediterrâneo da linguagem ("Os verbos de vernação").
Daí a exuberância, especialmente na primeira parte, dedicada, como ele diz, "às tardes com chuva". São mediterrâneos e texturais os caminhos: com pérgolas, cerâmicas, heras, sálvias, hibiscus, vinhas, colunas, citrinos, viagens pelo Cáucaso, Chipre, Creta, Sevilha, Porto, a Andaluzia. Na segunda parte, dedicada ao mar, adentramos mais na mitologia, ao oceano como a grande hipóstase, como o autor aponta – ninfas, sereias, Anfitrite, as nereidas, que unem-se às demais habitantes do livro, dríades, greias, equidnas. Hoje eu/ compacto do azul/ tua quimera criada à espreita/ encantatrizes e barcos/ no porto/ os vinhos santos ("Egeu").
O azul predomina, ladrilhar é seu verbo, e, assim como às potestades, ficam mais evidentes as referências de Chioda quanto a grandes fontes. Além das metafísicas alusivas a Hilda Hilst e Cecília Meireles por toda a primeira parte de Tempestardes, estão lá os guias, em maioria e especialmente ibéricos: Helberto Helder, Eugénio de Andrade, Gabriela Llansol, Sophia de Mello Breyner Andresen, Federico Garcia Lorca. "Bibliomancia", induz. Sem mencionar os sopros alquímicos que também chegam da modernidade, nas presenças de Sergei Parajanov, Bjork, Egon Schiele, Devendra Banhart, Jane Birkin, entre outros, quando o autor integra contemporaneamente inspirações variadas à sua cornucópia visionária.
Todas as palavras em estado primordial e ainda todas as entidades atemporais do universo de Leonardo Chioda encerram o livro em tom variante mas derivativo do início. Em contato com o outro, o objeto amado com quem é necessário o "acerto de pontas", a lírica órfica torna-se rascante, por vezes urbana, sem que no entanto perca-se a linha da magia: Suor e saliva/ a redigir as águas. Abraço por trás: fileira./ Dois de copas. O mesmo ritmo./ Sempiterno./ Dois, um dia confirmados no espelho/ a sorrir das falhas e venerações. Écogla à teia/ do destino ("ZEITGEIST; anatomia de um").
Em resumo, percebe-se nesta escrita a leitura. A diferença, no entanto, é a dimensão literal do que o poeta lê. Ler, aqui, sinônimo de percepção. Novamente, para os que se familiarizam com a visão mágica, é manifesta a continuidade da leitura do universo, expressa na latência das palavras, mas também estudada e praticada cotidianamente pelo tarô – sendo Chioda um dos maiores tarólogos brasileiros em atuação. As lâminas lá estão, oraculares, como cortes transversais ao estabelecido da realidade, da linguagem, do tempo, porém a favor da unidade. Há que se perceber figuras como A Morte e O Carro, e toda a sua bagagem mítica, não cessando a leitura nos signos, mas extrapolando-os. O universo é espelho intrínseco; as cartas, mapas abertos; no entanto, concomitantemente, a analogia escapa de si mesma, explodindo relações entre poesia e mundo.
Ascese ou risco?... Sem sair da tarde chuvosa, da varanda com o café, dos silêncios dos gatos, o leitor deve passar também pelo portal, sem dar-se conta. O autor, à busca dos deuses pela divindade da linguagem, registra fisicamente aqui o diálogo. Início sem tempo: outra forma de escritura, novo modo de procura, mais leituras e visões a caminho. Agora sai/ e vê:/ a tarde é obra poética/ tempestade/ luz e alguma promessa.
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