Prova


 
 
 
 
 
 
Evidência
         Löis Lancaster

Indício, Traje, Palato – três termos que de diversos modos estão associados a outro, mais polissêmico, Prova. Uma trindade que beatifica a força sobrenatural das palavras. Assim são os poemas de Rosane, impregnados de uma religiosidade outra, não-transcendente, que busca fixar a brutalidade de tudo aquilo que é, sem anulá-la com metáforas, mensagens ou exemplos. Chegar a esse mundo de começos, onde cada mínimo acontecimento é um big-bang, exige de saída o rigor de constatar que também as palavras acontecem desse modo.

O caminho encontrado em Prova é múltiplo, mas sempre talhado no compromisso com o instante. Em Indício, ele reconhece as multidões de eventos que passam por nós enquanto nos atemos a objetivos urbanos diários – as produções insuspeitadas de nosso labor de Sísifo – como milagres inconfundíveis, sem a névoa de nenhum propósito socialmente reconhecido a toldar-lhes as cores e formas. Surge o inexplicável, o vergonhoso, o repentino, e surge rebocando de volta à Terra todas as liturgias, viradas pelo avesso e espargidas pelo inteiro do livro. Assim são os “bichos divinos” de Complexidade, redimidos por sua imperfeição. Assim é a vida das Coisas vivas, que antecede qualquer vivido e não pode ser capturada por nenhum reconhecimento, mas emana concreta e inconfundivelmente das ações, das palavras, como um halo incompreensível de beatitude.

Em Traje o foco se desloca para os corpos e as atitudes e situações que os envolvem, que interconectam diferentes níveis de percepção. A loucura se ajusta à cintura, a imagem de Marilyn Monroe decai e se dilui em texturas e torturas, pintada a carne como o papa de Francis Bacon. No mundo tempestuoso, as diferenças transeuntes engendram relâmpagos epifânicos de conexão, a freira encontra a boêmia nas calçadas da Glória. Cruzam-se os hábitos. Persiste a precisão aguda dos termos – cada verso é um organismo que subsiste lido ou declamado, extrapolando sonoridade e sentido unidos. É natural, portanto, que brotem palavras-valise como últero e madrugal, nesse lugar eminentemente relacional do título. O que pulsa em todo o corpo dos poemas são justamente essas relações entre todos os aspectos do que se lê.

Essa agudeza prenhe de sentido transborda na carne, no sexo imponderável, nos sentidos que nos definem enquanto barram e deixam passar interiores e exteriores. Temos a epítome do sacro-profano no Palato que recebe a hóstia, na bíblica espera dos pés dos homens, na santíssima unidade dos corpos, das línguas, que se espraia em borbotões textuais incontidos pela forma dos versos. Temos então um gosto especial em saborear esse novo formato – a prosa nossa de cada dia, transfigurada – ao vermos pouco a pouco concluída a peregrinação pelos poemas stricto sensu.

Chegamos ao lugar de onde nunca partimos, ao que clama, que salta aos nossos olhos, ao que é evidente; e Rosane nos mostra, palavra após palavra, que da evidência – outra acepção de Prova – é que pode surgir a vidência.

 


Tecelã de mitos
        Leonardo Vieira de Almeida

 
O erotismo pode ser vivenciado num livro de páginas em branco, em que resgatamos a plenitude dos corpos inscrevendo-lhe os versos que nós, leitores, jamais ousaríamos pronunciar, às seis da tarde, em plena metrópole. Assim podemos “traduzir” a experiência de “Ave-Maria”, poema que abre Prova, segundo livro de Rosane Carneiro. Somos, de cara, convocados ao livro por uma prece, ou por um torneio metonímico que nos rouba da razão urbana para o terreno “sagrado” do texto, veículo inconfessável e perene, indício de uma breve suspensão do tempo retórico, este tempo em que o prazer do contato encontra-se enclausurado pelo pensamento, como dizem os versos: “a face interna dos homens/ entardece em filosofias”.

Pouco a pouco, atendendo ao chamado da prece, vamos descortinando o corpo das ruas e do eu narrativo, este sim, um dos mais ricos recursos estilísticos de Prova. Cidade e corpo que se procuram, mas fadados à perda do estágio mítico: esta vida, imaterial, que sobrepaira qual a sombra do gigante de Swift, capturado pelos liliputianos personagens da sátira urbana. “Meditação azul” reforça a ideia da tentativa de se buscar pela natureza os Diálogos com Leucó, o último testemunho de Cesare Pavese sobre a perdida mitologia do amor, da morte e da dor: “Nas pedras em tranças/ alcançar/ o sentido/ da praia estendida sobre o vão/ Lençol de perguntas/ rebatendo na face/ - Para onde? Para onde?”. Rosane, nestes versos, não procura resgatar a linguagem do mar, das ondas que rebatem perguntas?

O mar de Homero e seus rios podiam sentir a cólera e a tristeza dos homens em guerra. Os afrescos azuis de Rosane, postais líquidos da cidade carioca, também sentem o frio contraponto da filosofia e de determinada arquitetura, que, ao invés de se inserir como mais uma nota ao ritmo das formas sensuais e femininas da natureza, desenha uma fissura na paisagem: os prédios monolíticos, silêncios de concreto e vidro. Mas, por outro lado, as luzes nos arcos da Lapa, a igreja da Glória, o Cristo Redentor, são todos símbolos icônicos que se mesclam ao desejo, à poesia, e que se descortinam pelos versos de Rosane. 

“Canetas vazar-me-ão os olhos para que somente escreva visões de dentro, espaços sísmicos entre a mente e o coração abarrotado de esferas”. Ecos de Rimbaud? Para se fazer visionário, ou, vislumbrar a vida em meio ao caos urbano, é necessário um desregramento de todos os sentidos.

Há o encontro entre a mulher do “vestido roxo decotado”, de “olhos atormentados do ontem, da bebida, da ansiedade”, e a freira, numa calçada imaginária do Rio de Janeiro: “Cálido contato, eu sei o que é ser assim, irmã”. A religiosa e a poeta dão-se as mãos em parceria do mesmo ofício: o de revestir o ordinário com o sagrado.

Sagradas também são as montanhas: “Minhas palavras são grandes como as montanhas”. O corcovado, o morro da Urca, a pedra da Gávea dialogam a cada instante com olhos que sabem ler na geografia as páginas do livro oculto dos enamorados pela palavra: despir a fácies em clausura do idílico, afastar Tanatos por um ato de afeto.

Em “Lanternas vermelhas”, vagões do metrô se metamorfoseiam em dragão chinês. Como escapar ao rito cotidiano, à ansiada estética pelo ordinário? Caminho este que poderia nos recuperar do tempo previsível e mecânico do engenho ocidental, e que Rosane, recriando-se “larva apaixonada”, se deixa ser engolida e aos pensamentos, em gozo de amor intransitivo.     

“O AMOR, QUERIDO, É LIBERTÁRIO como uma multidão de campânulas ao vento, as damas-de-honra da chuva com o vão, na nave da aurora, na morte da hora atrás, no estertor do tempo, tragado pelos campos bandeiras de Deus”. Rosane Carneiro, como sáfica deidade, percorre o tênue caminho que hoje ainda resta a Eros. Tecelã de mitos,  nos dá o testemunho de que a tentativa de ultrapassar a distância que separa os amantes, a cidade do peregrino, ou a página do pensamento é uma só: um gesto de Proteu - transformar-se pelo olhar e pela palavra, desafio livre e possível.

(Resenha publicada no jornal Rascunho, em 2005)

 

 

Poesia de concisão e crítica
                                     Astrid Cabral

Após lançar Excesso em 1999, Rosane Carneiro publica este ano nova série de poemas, Prova. A simples menção dos títulos já alerta o leitor para significativa constante estética no trabalho da autora. Trata-se da exigente autocrítica com referência à concisão e essencialidade da palavra. Se ela se julgou transbordante ao estrear, concentrou-se agora no mínimo da prova. Resulta de tal rigor uma poesia despojada de eloquência, vacinada contra adjetivos, ludismos e demais supérfluos verbais. Uma poesia cuja dicção se avizinha do silêncio, reconhecido textualmente, por Rosane, como fundamental (“O silêncio é útil”). A omissão de títulos em algumas composições é sintomática consequência dessa atitude nuclear no processo criativo. Daí o poder de sugestão dos poemas ultrapassar o de declaração, remetendo o leitor ao amplo reino das conotações e do intercâmbio subjetivo.

Prova estrutura-se em três partes, mais comunicantes do que estanques, mas que se definem por predominância temática. Em “Indícios” tem-se o olhar sobre cenas urbanas, contracenando com momentos de meditação. Na seguinte, “Traje”, o próprio nome insinua o cunho intimista das emoções à flor da pele, o viés confessional  tão bem expresso pelos termos “visões de dentro”, “espaços sísmicos entre a mente e o coração”. Já “Palato”, a última parte, se caracteriza pela exploração do veio erótico, a volúpia sensual que abarca o corpo e o nascedouro físico da palavra.

A presente coletânea de Rosane Carneiro mostra uma flutuação entre o verso e a prosa poética, o que no conjunto não comporta nenhum choque formal, uma vez que os versos se desdobram de forma solta, rejeitando qualquer simetria tradicional, a métrica em frequente oscilação. No belo poema “Gira mundo” lê-se, explícito, o reconhecimento do seu processo de liberdade criadora: “Minhas palavras/são grandes como as montanhas/sentadas no chão da terra/ a observar o céu/ São palavras sem retorno/circulando livres/nos espaços entre os breus/ como as montanhas”. As composições guardam, portanto, um contorno do mundo natural, pois estão em afinidade com a emergência de movimentos interiores orgânicos e não submissos a esquemas abstratos externos.

Na abrangência temática dos 50 poemas, alguns aspectos se salientam, tais como o isolamento do ser urbano, consubstanciado de forma pungente no poema em que o “O cão de rua/ sorri com olhos tristes/ a nossa sincera e comum tragédia”. Outro, da maior relevância, é a emancipação dos dogmas religiosos conduzindo à “fraternidade livre”, ao vislumbre da condição humana  sem o estigma do pecado (“somos apenas/bichos divinos”). Graças ao olhar de aguda percepção crítica, a autora desmorona mitos e enxerga “sob a seda da pele/ cicatriz de estopa”. Sem estardalhaço e com sutilezas, enverga “sempre/ uma seda afiada”, o que lhe permite inclusive chegar à irreverência de mencionar um deus que em vez do pão “Nos dá o não de cada dia”.

 

 
Pedras preciosas
            Ricardo Gramos

Excesso, coletânea de poemas lançada em novembro de 1999, surpreendia o leitor atento pelo domínio e maturidade de Rosane Carneiro em lidar com seus materiais sensíveis.

E era um livro de estreia. Desde então, de intensa atividade literária, a autora reuniu essas experiências e nos dá, agora, o renovado prazer do contato com trabalhos mais recentes. Prova, dividido em três estados d’alma, surge daí, e, também, quando Rosane perambula pelo tradicional bairro carioca da Glória e cercanias boêmias, do pastoreio de seus próprios duendes.

Nesses tempos de novidade a qualquer custo, do proclamado pós-tudo, Prova é um rali poético que testa o saber da forma como questão muito relativa. O continente é vasto na escultura de signos pessoais e intransferíveis. Talvez seja, como ela diz,

 
qual oferenda
que desconhece a hora
dos rituais

(in "Liturgia")

 
Numa busca do registro das direções apaixonadas, aqui nada se oculta. Não há receio de nada. A poeta sabe muito bem que dizer tudo é forma.

 
impressão que na alma
é pouco

(in "Tatuagem")


ou


vivo não sou eu
ou você
vivo é o que antecede

(in "Coisas vivas")


Tensão da véspera de enorme banquete, de como trajar-se para o derradeiro embate ansioso dos convívios inesperados – leitores? –, Prova tem várias pedras no caminho. Preciosas.

 

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