Corpo estranho


  
 
           
 


  
 
 
            Leonardo Vieira de Almeida

Corpo-catedral, corpo-latência, corpo-mundo, corpo e poesia. Para quem joga com tais amálgamas, a exigência de uma estranheza reveladora de todos nós passa ao largo dos modismos formalizantes e banais que sulcam na carne já de todo em estado de metástase de nossa atual fatura poética uma esclerose do corpo e de seu sagrado erotismo.

Se erótico é sinônimo de vital, dar-lhe forma por meio de palavras assinala dois desafios de inteira ousadia. O primeiro, de torneio arquitetônico, elege os retábulos como acesso, poderia se dizer de linhagem gótica, aos estudos pictórico-sensório-epífanos dos quais o poema a Antoni Gaudí seria a metonímia. Gótica significa, vale lembrar, goticística, referente a uma estrutura que lembra os labirintos fitomórficos em mise en abyme que florestam a catedral da Sagrada Família, corpo ex-cêntrico das calles de Barcelona. Já o segundo, em chave psicanalítico-filosófica, discorre sobre o precário tempo do mundo, fadado a estes outros “estranhos profetas”: a doença e a morte.

Mas neste seu pequeno livro-corpo “indevido”, Rosane Carneiro não presume a fatal destinação dos seres, desde o “ovo” condenados a uma vita breve. Evoé, ruge a poetisa, convidando homens e mulheres ao renascimento de Dionísio, seja nesta existência bailarina, seja em outras de um aquém-túmulo. E se a vida pode ser “memória do corpo” ou “carne da história”, por um lado indica aquilo que resiste, por outro o que sacia a fome de si e do alheio. Ou seja, a fronteira entre o corpo inibido e o corpo desejante: “Ao alcance dos olhos a cura/ o que não se procura/ não se prescreve/ receita em descoberta”.   
 
(orelha)



           Antonio Carlos Secchin


As modulações de Eros, tão presentes em Prova, livro anterior de Rosane Carneiro, ressurgem ainda mais intensas e bem trabalhadas neste Corpo estranho. Na busca de palavras que digam a força da matéria, Rosane defronta-se com a “carne da aurora”, deseja a “embriaguez da luz”. Na sua poesia, transforma-se o estranho em entranha, pois o outro já surge sob o signo da interioridade: “germine em mim / a pele do homem amado”. Sorver o corpo da paisagem (“os músculos do vento”) ou perder-se na paisagem do corpo são movimentos que apontam para a mesma direção: a da palavra poética entendida como a prática de uma erosgrafia.



(Quarta capa)
 



 


O sacro, o profano e o corpo
Obras de Rosane Carneiro dialogam com Hilda Hilst e Frida Kahlo

                          Elaine Pauvolid
                          Poeta

 
Corpo estranho, terceiro livro da poeta Rosane Carneiro, sacramenta uma vocação. Em Excesso, o primeiro, de 1999, mostrava-se dona de seus limites e transgressões em passeios pelo corpo e pela alma. A voz sacra clamando santos e ditando preces numa latinidade mística intercalava com o profano da matéria, evocando o universo pictórico da mexicana Frida Kahlo (1907-1954). Ainda que o título seja Excesso, segue a sugestão de Ezra Pound (1885-1972) da busca pela palavra exata. Rosane só escreve o que e insubstituível.
 
Prova surgiu em 2004. O título, que se justifica numa aprovação de conteúdo, ou no rito de passagem, como verbo ou substantivo, abre um leque de possibilidades e indica uma obra coerente. A voz e reconhecível. Os mesmos elementos: o sacro, o profano, o corpo. A mesma característica de estilo e concisão. Se no primeiro livro o excesso era necessário – excesso de imagens poéticas – no segundo o excesso é lembrado como algo que ja foi, trazendo a presença do tempo no movimento mesmo da busca por uma maior precisão, no enxugamento das palavras e refinamento do uso.

Em Corpo estranho, os elementos de Excesso e Prova se reafirmam. Na nova produção, a ratificação do corpo com cicatrizes, raízes plantadas no chão como pernas humanas, ou pilares de concreto através da paixao e da razão. De novo se pressentem os tons de Frida Kahlo, talvez em telas menos rubras.

Corpo estranho vem maduro. E para ficar no domínio dos quadros, o leitor fazendo uso de sua imaginação poderá reconhecer, entre uma página e outra, a senhora de cabelos brancos, isolada numa casa no mato, com um cigarro nos dedos, olhando para você da janela. Trata-se da percepção de um diálogo com Hilda Hilst (1930-2004). A influência da poeta paulista na obra da jovem carioca Rosane Carneiro não se faz pela semelhanca apenas de alguns dos elementos presentes em Hilda. Isso se poderia dizer dos livros anteriores. O que se revela, mais do que influência de estilo, é o diálogo, a continuidade, a resposta à voz antecessora. Citemos um poema: “Eis minhas patas/ toma-as com cuidado/ estão acerca de mim/ como leões de chácara/ e prantos de gárgulas// toma-as com amor/ veste-as novamente/ de força/ fá-las fulgurar/ para o baile do futuro// verte-as em crinas/ de vigorosas tranças/ cura-as com punho de lavrador/ toma-as de novo/ pernas raízes colunas eixos// pilares”.

Ambas as autoras conseguem evocar o silêncio e celebrar o reconhecimento de seus corpos, como descoberta incessante que não para de surpreendê-las, movendo-as para uma escrita de testemunho e à libertacao da mudez. Silêncio quebrado pelo poema, pela construção de imagens. Com este terceiro livro, Rosane Carneiro firma-se com dicção e propostas bem definidas, o que faz dela um nome a ser lido e divulgado para suscitar novos diálogos. 
 

 (publicado no suplemento "Ideias", do Jornal do Brasil, em 2005)

 


Corpo estranho e delicioso de Rosane
                                                            Paula Cajaty
 

O corpo de Rosane flerta em Barcelona. A orelha de Leonardo Vieira de Almeida adverte das amálgamas entre palavra e carne, entre a poesia e a dança flamenca das calles góticas da Catalunya.  A quarta-capa de Antônio Carlos Secchin referenda esse signo da interioridade, da palavra poética como emanação de um eros que se esconde em todo corpo vivo. Na verdade, ambos dão a pista certa, embora sob seus enfoques peculiares.

A epígrafe de Paul Valéry dá a terceira chave para a compreensão do que há de enigmático no Corpo poético de Rosane: 'A observação do artista pode atingir uma profundidade quase mística', de modo que Rosane acredita firmemente que os objetos se transformam de acordo com a alma, o olho e a mão de cada observador.
 
Partindo dessas três premissas, as palavras e os versos de Rosane bailam entre seus temas prediletos: a gênese, o corpo, a arquitetura da matéria, a vibração do espírito, esse etéreo que permeia e reside em tudo. Às vezes, ela faz uso de poemas em fluxo contínuo de pensamentos, na respiração intensa de quem está em movimento. De outras vezes, Rosane escreve intercalada, respira em pausas ritmadas, enquanto questiona a fronteira entre o corpo e o universo e examina as fronteiras dos desejos internos e imponderáveis, como se pudesse testemunhar o big bang.
 
As citações a Gaudí, Tanussi Cardoso e Amy Winehouse mostram como a poeta sabe encontrar a tradição na modernidade, e unir tudo dentro de si numa só significação perfeita e harmônica. Em Rosane não há dicotomias: a unidade se faz no corpo santo que se move em danças, na dança pagã que se escreve em corpos.
 
A poesia de Rosane lembra o que de estranho exsurge de nós - e nós nem sempre temos a lucidez necessária para reparar. ¡Olé!
 
(Publicado em
 
 
 




 

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